Ciência diversa – Mulheres cientistas
“Na ciência não há espaço para a maternidade”
Depois do nascimento do filho, Cristhiana Röpke e o marido consideraram o fechamento de um ciclo de mais de 15 anos de pesquisas científicas na Amazônia e mudaram para São Paulo. Outra pesquisadora manauense, Flávia Siqueira de Souza, decidiu com o marido não ter filhos. Por outro lado, na mesma função como cientista, Maria Angélica de Almeida Corrêa volta o olhar para o campo de pesquisa e pondera a posição da mulher nas comunidades ribeirinhas: um esteio, pilar de sustentação no núcleo familiar.
Suscitando experiências distintas, essas três mulheres pesquisadoras, cientistas, se encontraram no Peld Diva, um projeto do Programa Ecológico de Longa Duração: Diversidade da Várzea, na Amazônia. “Somos divas e divos em harmonia”, declara Flávia, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), desconstruindo o paradoxo de gênero, apesar de reconhecer as barreiras que surgem para as mulheres na trajetória científica.
Junto com as atividades de professora na Universidade Federal do Amazonas Flávia coordena o Peld Diva. Nesse desafio conta com a força de outra mulher, a Biologia Marinha Claudia de Deus, pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). As duas estão à frente do projeto ecológico desenvolvido na Amazônia congregando outras pesquisas que reúnem em torno de 25 mulheres e 14 homens.
O projeto Peld Diva foi contemplado pelo Programa Ecológico de Longa Duração por meio do CNPq concorrendo aos editais em 2016 e em 2020. Contudo, as instituições de ensino e pesquisa que ancoram o Diva guardam informações coletadas desde 1999. Dessa forma, os pesquisadores contam com uma base de dados consistente para sustentar novas indagações.
As investigações atuais buscam compreensão acerca das condições de vida dos peixes e da população ribeirinha nas várzeas amazônicas. O que acontece com os peixes nas cheias, na seca; questões alimentares, reprodução. O pirarucu é o mais importante por ser um alvo mais frequente e integrar o cardápio de proteínas dos ribeirinhos e da população em geral. Por isso, as pesquisas também procuram conhecer com mais precisão as práticas de pesca e fazer associações dessa atividade em várzeas onde as condições de conservação são diferentes.
Desde a edição do Peld Diva de 2016 foi planejado um estudo socioeconômico junto às comunidades de moradores nas várzeas. O Peld Diva delimitou 4 campos de pesquisa, chamados “sítios”, um na Região Metropolitana de Manaus e os demais em lugares mais distantes. Essa pesquisa levantou até o momento dados de sete comunidades nesses 4 sítios, um universo em torno de 420 famílias. É o início de um banco de informações socioeconômicas relacionado com a pesquisa ecológica. Nas palavras da coordenadora desse segmento, Maria Angélica de Almeida Corrêa, professora na Ufam, “essa é uma das primeiras pesquisas que capta a relação do homem, suas atividades produtivas e a questão do pirarucu nesse contexto. O homem faz parte desse ecossistema e interfere na cadeia; ele é um predador, beneficiário, usuário de todo esse sistema e agente de alterações no ambiente”.
“As comunidades à beira dos rios têm núcleos familiares ancorados nas atividades das mulheres. Elas que dão suporte aos maridos para saírem pescar, no retorno, quando precisam se alimentar, atendem aos filhos, governam a casa.”
“Em algumas comunidades a mulher participa do beneficiamento da pesca – fazem os registros no relatório para mandar para o Ibama, controlam as quantidades pescadas, as vendas…”
“Muitas famílias foram embora da comunidade e por causa da pandemia (Covid-19); sentiram o abandono, preferiram se mudar para os centros. Comunidades que tinham cerca de 80 famílias agora tem 40.”
Maria Angélica de Almeida Corrêa, tem três filhos adultos
“Nunca percebi a dificuldade de ser mulher pesquisadora. Ser mulher trabalhando na Amazônia exige coragem para chegar a lugares remotos sozinha, mas as pessoas com quem trabalhávamos eram muito corretas. O preconceito era demonstrado pelos ajudantes de campos locais, porque não eram habituados a verem mulheres trabalhando”, narra a pesquisadora.
Convicta, Cris confessou que as dificuldades para priorizar a atividade científica vieram com a maternidade: “A ciência, nos termos que é desenvolvida hoje, não tem espaço para uma função paralela como ser mãe. A gente espera um acolhimento da ciência porque ela trabalha com dados, tem uma informação a respeito que dá discernimento para perceber cada situação. Mas na prática, com a maternidade, apesar das flexibilidades do pós-doutorado, a conciliação é difícil.”
Cristhiana revelou que sua pesquisa ligada ao Peld Diva é direcionada a avaliação de impactos das atividades que correlacionam o efeito do manejo sobre a conservação dos peixes por meio de análises temporais, comparações entre diferentes locais e desenvolve esse tema, ou correlatos, desde 2006. Mas a partir de 2019 e durante a pandemia, com a chegada do filho, a permanência em Manaus não era mais viável. O marido de Cris também foi pesquisador na área da ecologia e, naturais do Estado de São Paulo, o casal não encontrou uma rede de apoio adequada no Amazonas. Em 2021 mudaram-se de volta para São Paulo. O marido migrou para a área da Ciência de Dados e Cris faz o pós-doutorado no qual ainda emprega análises da Amazônia, porém não mais em campo.
Os mecanismos de avaliação do desempenho da pessoa na função de cientista passam pela publicação de artigos em revistas especializadas. A partir disso, o pesquisador alcança níveis superiores de avaliação e conquista uma posição mais vantajosa na competição pela aprovação de financiamento de projetos junto às agências de fomento. Assim, a ausência de publicações em periódicos de alto nível prejudica a carreira do pesquisador.
Nesse sentido, uma matéria na Revista Nature, publicada no final de janeiro deste ano, aborda o problema da desigualdade de gêneros na ciência, como consequência da maternidade. Cita uma pesquisa realizada pela coalizão Mothers in Science, baseada na França, coma a parceria de outras 17 organizações ao redor do mundo, mostrando as consequências para as mulheres dessa discriminação que ocorre em torno da cientista-mãe.
- O estudo comparou durante um período de 10 anos homens que se tornaram pais e mulheres que se tornaram mães: nesse período as mulheres tinham, pelo menos, 10 artigos a menos publicados do que um homem que se tornou pai.
- Cerca de um terço das mães (34%) que trabalham turno integram nas STEMM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática e Medicina), ultimamente, deixaram seus empregos.
- Uma entre três mulheres dizem que sua competência foi questionados por seus empregadores e colegas desde que se tornou mãe.
- As mulheres são três vezes mais propensas do que os homens a dizer que receberam menos oportunidades profissionais. Mais de 60% das mulheres que estudam ou trabalham nessas áreas disseram que a maternidade impactou negativamente a carreira.
Fala-se que a maternidade é um problema individual, mas a pesquisa mostra que é um problema estrutural. Faltavam pesquisas com maior amplitude para detectar o fato. Finalmente, começam a aparecer resultados. Outra pesquisa que mensura o impacto da maternidade na produtividade científica corrobora os dados levantados pelo Mothers in Science. A pesquisa foi publicada em fevereiro de 2021, na Science. Aplicada em 2017 e 2018 entre 3.064 professores titulares em 450 departamentos de Ciências da Computação, História e Negócios nos Estados Unidos e no Canadá.
Essa pesquisa comprova que a maternidade “explica a maior parte da diferença de produtividade de gênero ao diminuir a produtividade média de curto prazo das mães, mesmo porque os pais tendem a ser um pouco mais produtivos em média do que os não pais.”
“Antes dos filhos, as taxas anuais de produtividade de homens e mulheres são semelhantes. (…) No entanto, a produtividade anual das mães diminui imediatamente após o parto, em comparação com as não mães ou os homens. O evento da maternidade diminui acentuadamente a produtividade de curto prazo para as mães (de -48,3% a -17,3%), mas geralmente não para os pais, com exceção do campo da História.
“A maior parte da lacuna existente (entre 87,6 e 95,6%) é causada por um efeito de gênero da maternidade: entre os professores de ciências, ao longo dos 10 anos após o nascimento de seus filhos, as mães produzem em média 17,6 menos artigos do que os pais – uma lacuna que levaria cerca de 5 anos de trabalho para as mães fecharem”, conclui a pesquisa.
E ainda, demonstra que políticas como licença parental remunerada e cuidados infantis adequados auxiliam na permanência das mulheres na academia e em processos seletivos. “Esses resultados têm amplas implicações para os esforços para melhorar a inclusão da bolsa de estudos”, registra o artigo.
Tendo consciência desses fatos antes mesmo do que qualquer estudo de gênero na ciência estivesse planejado, a coordenadora do Peld Diva, Flávia Siqueira de Souza, decidiu dedicar seu tempo para a ciência, em concordância com o marido. “A atividade de pesquisadora sempre foi prioritária. Sabia que no momento em que seria mãe não conseguiria seguir como cientista”, explica Flávia.
Segundo a coordenadora do Peld Diva, as mulheres formaram um grupo afinado, encontraram um formato de gestão mais coeso. Mas não foi proposital, aconteceu de forma aleatória, natural. “Os homens dão um suporte importante na retaguarda e está funcionando muito bem. Uma segurando na mão da outra e na mão dos meninos!”
“Temos que continuar lutando pelas posições de liderança e direitos de maternidade. Não tem como se manter produtiva. Eu reduzi a produção de artigos.
Abrir condições melhores para as mulheres em pesquisas, automaticamente abrirá espaço para as meninas, porque as meninas buscam referências e barreiras como essas as desencorajam desde cedo. Tem meninas com habilidades desde cedo para a ciência e vão sendo afastadas dela ao longo do tempo.
A ciência está perdendo muitas pessoas boas porque está assumindo o modelo empresarial e não vemos sinais de mudanças desse modelo.”
Cristhiana Röpke
No Brasil, um dos diferenciais para as mulheres que acabaram de ter filhos ou adotaram é amparado legalmente pela lei Nº 13.536 que permite “a prorrogação dos prazos de vigência das bolsas de estudo concedidas por agências de fomento à pesquisa nos casos de maternidade e de adoção”.
Mas a solução ainda é incipiente. Buscando fortalecimento, as pesquisadoras se uniram em torno da “Parents in Science”, um grupo formado por cientistas mães e pais “com o intuito de levantar a discussão sobre a maternidade (e paternidade!) dentro do universo da ciência.” Em janeiro deste ano o grupo encaminhou à CAPES uma carta com 1.587 assinaturas de docentes, discentes, pesquisadores e servidores “solicitando a inclusão de informações sobre a maternidade na Plataforma Sucupira”. E no site há guias e material de apoio para as cientistas que iniciam a maternidade.
De acordo com as regras aplicadas pelas agências de fomento à pesquisa, os financiamentos na academia ocorrem conforme o sucesso na carreira de do ou da pesquisadora. Portanto, a Mothers in Science elaborou um plano de ação para as agências de fomento à pesquisa considerando essas questões. As propostas são:
- Fornecer apoio financeiro para garantir a continuidade da pesquisa.
- Fornecer flexibilidade aos pais e cuidadores.
- Eliminar o preconceito e a discriminação.
- Simplificar os pedidos de subsídios e reformar o processo de avaliação.
- Medir e monitorar a diversidade e a inclusão.
- Implementar o suporte para o impacto da COVID-19.
Texto: Márcia Dementshuk
Fotos: Acervo PELD DIVA/AM
Produção: Kevin Moraes – PELD DIVA