O setor elétrico brasileiro encontra-se diante de um marco regulatório relevante com a regulamentação do uso de tecnologias de armazenamento de energia elétrica, proposta pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) por meio da Consulta Pública (CP) nº 39/2023.
Iniciado com a abertura da primeira fase da Consulta em outubro de 2023, o processo é aguardado com grande expectativa pelo mercado, tendo em vista que a integração dessas tecnologias é essencial para garantir a continuidade dos avanços tecnológicos no setor e continuidade da transição energética.
A crescente participação das fontes renováveis intermitentes na matriz elétrica, combinada às mudanças no perfil de consumo, vem impactando os fluxos de potência desde os sistemas de transmissão até os pontos de consumo, o que têm gerado uma demanda crescente por maior flexibilidade operacional para gerenciar a confiabilidade sistêmica – um desafio que coloca as soluções de armazenamento de energia em evidência como uma resposta estratégica e eficaz.
Os sistemas de armazenamento destacam-se como recursos versáteis, capazes de desempenhar múltiplas funções no setor elétrico, posto que, além de poderem operar como geradores, podem ser utilizados como equipamentos de transmissão e também atuar conectados aos sistemas de distribuição, sendo classificados como Recursos Energéticos Distribuídos (REDs).
Entendendo o tema como fundamental para a evolução de uma matriz elétrica renovável e diversificada e no intuito de guiar investimentos em Armazenamento, a Greener lançará nas próximas semanas um Estudo Estratégico sobre a temática.
1. Definição do MUST/D a ser contratado
A definição dos Montantes de Uso dos Sistemas de Transmissão (MUST) e de Distribuição (MUSD) para empreendimentos que incluem Sistemas de Armazenamento de Energia (SAE), sejam eles autônomos ou colocalizados com geração, é um ponto crucial no processo de regulamentação.
Nesse sentido, dentre as alternativas apresentadas, as áreas técnicas da Agência optaram por considerar o sistema de armazenamento na faixa de potência contratada, havendo duas possibilidades:
Possibilidade 01 –
Considerar o sistema de armazenamento na faixa de potência contratada: a potência do sistema de armazenamento será incluída na faixa contratável, com o piso definido pela maior geração injetável e o teto pela soma das potências de geração e armazenamento, de tal forma que os empreendimentos existentes possam instalar sistemas de armazenamento sem alterar os parâmetros previamente contratados.
Possibilidade 02 –
Redução do piso da faixa de potência: Possibilidade de redução do piso da faixa de potência contratada, mediante o cumprimento de três premissas principais: (1) a redução máxima de 15% do MUSD/T, aplicável a sistemas de armazenamento colocalizados com a central geradora; (2) reforço nas medidas de enforcement, incluindo regras sobre limites de ultrapassagem e obrigações de instalação de sistemas como o Sistema Especial de Proteção (SEP); (3) vedação de serviços que impliquem despachos de potência pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) ou distribuidoras, em casos que exijam o uso da rede para injeção em plena potência (geração + armazenamento) acima da faixa de potência reduzida. Cabe ressaltar, porém, que tal possibilidade só é aplicável aos novos acessantes à rede.
2. Definição da forma de contratação do uso da rede (CUST/D)
A proposta das áreas técnicas da ANEEL é de que a contratação do uso da rede seja unificada para empreendimentos que integrem sistemas de armazenamento, permitindo a associação entre empreendimentos de geração e armazenamento em um único contrato.
Contratação única: (i) os empreendimentos de geração e armazenamento podem ser associados, resultando em um único Contrato de Uso do Sistema de Transmissão ou Distribuição (CUST/D); (ii) a contratação não distingue o fluxo de potência (consumo ou geração), substituindo o modelo atual de contratos separados para carga e consumo.
Ponto de atenção | Desconto na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição ou Transmissão (TUSD/T): o desconto tarifário, previsto pela Lei nº 14.120/2021 e pela Resolução Normativa (REN) nº 1.031/2022, está condicionado à origem da energia injetada no sistema, de forma que, se o sistema de armazenamento for carregado exclusivamente pela energia gerada pela central associada, o benefício tarifário permanece, já que o sistema de armazenamento não gera energia adicional, apenas armazena.
No entanto, se o sistema de armazenamento for carregado com energia adquirida do sistema, o desconto tarifário não se aplica, em mecanismo semelhante ao adotado para as Centrais Geradoras Híbridas (UGH), quando uma das fontes não é elegível ao benefício.
Sistema de armazenamento em unidade consumidora: não será permitida a injeção de potência na rede por unidades consumidoras que utilizem sistemas de armazenamento, dado que estas não possuem outorga e não haveria respaldo legal ou normativo para tanto, de tal forma que, nesses casos, a demanda contratada de injeção deve ser definida como zero.
3. Definição da Tarifa de Uso da Rede a ser aplicada (TUST/D)
Outro aspecto relevante como objeto de regulamentação foi a definição da TUST/D aplicável aos sistemas de armazenamento de energia. Nesse sentido, as áreas técnicas da ANEEL recomendaram a adoção da alternativa que define a tarifa com base no perfil dominante do empreendimento. Explica-se:
A tarifa principal a ser aplicada seria determinada pelo perfil dominante do empreendimento, ou seja, geração ou consumo. Já os excedentes que ultrapassarem o perfil dominante seriam tarifados pelo perfil secundário correspondente.
Por exemplo, no caso de um empreendimento que absorva mais potência do que gera, será aplicada a tarifa de consumo como padrão, e os excedentes de geração serão tarifados pela tarifa correspondente à geração. Da mesma forma, para empreendimentos cuja geração predomine, a tarifa de geração será a principal, com os excedentes de consumo tarifados pela tarifa de consumo.
No entanto, as áreas técnicas enfatizaram que ainda é necessário amadurecer a definição do que será considerado como perfil dominante, assim como estabelecer critérios claros para a caracterização dos excedentes e a periodicidade das revisões que determinarão o perfil de cada empreendimento.
Além disso, a proposta inclui a aplicação de uma tarifa fio flutuante, que varia conforme a ocupação da rede, adotando o conceito de sinal locacional, de modo que os custos reais associados ao uso da rede em diferentes locais serão refletidos.
4. Modo de outorga para sistemas de armazenamento
Outorga para o agente armazenador independente: a concessão da outorga será definida nos termos de autorização como Produtor Independente de Energia Elétrica (PIE), contemplando a natureza do sistema de armazenamento como um agente autônomo.
Outorga para usinas de geração com sistemas de armazenamento: Para usinas de geração que integram sistemas de armazenamento, a proposta das áreas técnicas da ANEEL é de facultar aos agentes duas possibilidades: (1) a alteração das características técnicas, para que o sistema de armazenamento seja incluído na outorga já existente da usina de geração; (2) a emissão de nova outorga independente, para que o agente possa optar por emitir uma nova outorga específica para o sistema de armazenamento, ainda que este esteja colocalizado com a central geradora.
5. Modo de remuneração dos sistemas de armazenamento
A proposta acatada pelas áreas técnicas da ANEEL prevê que os sistemas de armazenamento de energia poderão ser remunerados pela prestação de uma ampla variedade de serviços, possibilitando a exploração de múltiplas funções e o recebimento de receitas diversificadas.
No entanto, os próximos ciclos de regulamentação discutirão a identificação dos serviços que podem ou não ser empilhados por razões técnicas, além de estipular um desenho e uma operação dos mercados que coíbam o agente de ser duplamente remunerado por um mesmo serviço.
6. Aplicação dos encargos setoriais aos sistemas de armazenamento
A aplicação dos encargos setoriais aos sistemas de armazenamento também foi objeto de análise das áreas técnicas da ANEEL, resultando em propostas que visam esclarecer a forma de incidência desses encargos.
Nesse sentido, a definição apresentada considera que os encargos setoriais devem ser apurados com base no consumo bruto do SAE, ou seja, sobre o montante total consumido da rede, sem subtração da geração injetada, sendo a abordagem aplicada aos Encargos de Serviço do Sistema (ESS) e de Energia de Reserva (EER).
Da mesma forma, os encargos relacionados à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e ao Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA) também devem ser aplicados com base no consumo bruto, sendo cobrados pelas distribuidoras e transmissoras por meio da TUST/TUSD.
As áreas técnicas entenderam que, considerando que o SAE essencialmente não produz energia, mas consome, armazena e devolve ao sistema, é adequado que os encargos incidam sobre o consumo bruto, diferenciando-o de um autoprodutor de energia elétrica. Ou seja, não seriam concedidos ao SAE os mesmos benefícios do autoprodutor de energia.
Em relação à adesão à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), foi proposto que os SAE sejam considerados como agentes na Câmara na categoria de geradores, similar ao Produtor Independente de Energia (PIE). Além disso, foi destacado que as regras de comercialização deverão ser revisadas para adequar o tratamento regulatório ao consumo bruto dos SAE, uma vez que, pelas normas atuais, agentes que possuem consumo e geração podem obter abatimento de encargos, o que não seria aplicável aos sistemas de armazenamento.
As áreas técnicas também apontaram que o tema demanda uma revisão das Regras de Comercialização, o que ainda será operacionalizado pela ANEEL junto à CCEE.
7. Processo de fiscalização
No âmbito das propostas endereçadas pelas áreas técnicas da ANEEL, foi incluída uma previsão na REN nº 846/2019 que contempla as especificidades dos Sistemas de Armazenamento de Energia no contexto de ações de fiscalização, visando orientar a aplicação de penalidades aos agentes armazenadores autônomos, considerando as características próprias de sua operação.
8. Prestação de serviços ancilares
No que se refere à prestação dos serviços ancilares, destacou-se que, com a publicação da REN nº 1.062/2023, foi assegurada a neutralidade tecnológica, permitindo que o serviço ancilar de suporte possa ser prestado por qualquer fonte que atenda aos requisitos operacionais estabelecidos pelo ONS.
No contexto regulatório, já está prevista a inserção de tecnologias de armazenamento na prestação de serviços ancilares, como suporte de reativos, cabendo ao ONS definir os requisitos técnicos necessários para que esses serviços possam ser efetivamente prestados.
Adicionalmente, foi proposta a revisão da REN nº 1.030/2021, para incluir de forma específica a possibilidade da prestação de serviços ancilares por sistemas de armazenamento, desde que sejam atendidos os seguintes critérios: (i) comprovação dos requisitos técnicos; e (ii) vantajosidade econômica.
9. Programa de Resposta da Demanda
No âmbito do Programa de Resposta da Demanda, foi considerada a possibilidade da inserção de SAE nas instalações dos consumidores participantes, behind the meter, sem a necessidade de revisão normativa.
No entanto, as áreas técnicas destacaram que pode haver necessidade de ajustes em Regras e Procedimentos de Comercialização, elaboradas pela CCEE, bem como nos Procedimentos de Rede e Rotinas Operacionais, definidos pelo ONS.
Isso porque, segundo as áreas técnicas, os ajustes seriam necessários para lidar com os impactos que as atividades diárias de carga e descarga dos sistemas de armazenamento podem ter na definição da linha base de consumo, que é a referência utilizada para calcular a redução do consumo nos mecanismos de resposta da demanda.
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