premiação criada herdeiro Nobel
Tanto amor perdido no mundo/ Verdadeira selva de enganos/ A visão cruel e deserta/ De um futuro de poucos anos.” O leitor que não tem ideia de que música é essa e nem de quem é, por favor, contenha um pouco a curiosidade. Ela segue nesta toada: “Sangue verde derramado/ O solo manchado/ Feridas na selva/ A lei do machado”. Foi gravada em 1989, pouco depois da morte de Chico Mendes, o líder seringueiro assassinado em sua casa, em Xapuri, no Acre, a mando de um fazendeiro e seu filho. A Rio 92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, não tinha acontecido e aquele despertar para o clima, a natureza, a biodiversidade ainda estava por vir. A letra é visionária. Um pouco adiante menciona algo que fazia sentido à época e ainda faz: “Quanta falta de juízo/ Tolices fatais/ Quem desmata, mata/ Não sabe o que faz”. O parceiro desse compositor é outro talento que havia gravado muitos anos antes, em 1978, um protesto ambiental em forma de música. Começava assim (é um spoiler): “Lá vem a temporada de flores/ Trazendo begônias aflitas/ Petúnias cansadas/ Rosas malditas/ Prímulas despetaladas/ Margaridas sem miolo/ Sempre-vivas quase mortas/ E cravinas tortas”.
A poesia e o tom ecológico da dupla encantaram o sueco Marcus Nobel, presidente da United Earth, ONG que reconhece e promove a liderança ambiental no mundo. O sobrenome célebre de Marcus é aquele mesmo – vem de Alfred Nobel, químico e filantropo que inventou a dinamite, mas ficou mais conhecido por ter deixado sua fortuna para criar o Prêmio Nobel. O conjunto de seis prêmios concedidos todos os anos para reconhecer pessoas ou entidades que realizaram pesquisas, descobertas ou contribuições notáveis para a humanidade é a mais famosa distinção internacional dada a cientistas.
“Meu pai, Claes Nobel, e eu trabalhamos por um bom tempo com essa ideia de criar um novo Prêmio Nobel específico para o meio ambiente. Fomos ao comitê sueco, em 1972, e apresentamos a proposta. Mas nos disseram que não era possível, porque não estava no testamento de Alfred Nobel”, conta Marcus, sobrinho-bisneto de Alfred.
A iniciativa se concretiza agora: em 27 de fevereiro, no Teatro Amazonas, em Manaus, ocorre a primeira edição do United Earth Amazônia, uma espécie de “Nobel Verde”.
Serão premiados seis projetos ESG com impactos ambientais, sociais e de governança na região e escolhidos por um seleto comitê de especialistas. A intenção é que a premiação seja anual e se amplie a outros países.
A música entra na história por outras vias e é muito importante no contexto. “Os Estados Unidos, assim como o Brasil, estão polarizados. Perdemos o senso de unidade e a conexão com o que nos une”, diz Marcus Nobel, que vive em Portland, Oregon. “Acredito que a música tem esse poder de juntar as pessoas, nas celebrações, nos festivais. E essa intenção de unir está no nome da nossa organização – United Earth. A música tem essa magia e habilidade, de romper com o que nos separa”, continua.
A música faz liga também entre as entidades que criaram o Nobel Verde, por assim dizer. Claes Nobel, que fundou a United Ear-th em 1974, era próximo aos criadores da ICTM BrandBuilders, consultoria de negócios e “monetização de propriedade intelectual, especializada em celebridades”, como a empresa se define. Os executivos da consultoria, que trabalha com a criação e o crescimento de marcas, têm relação com a indústria do entretenimento.
“Música e arte conectam às emoções e sentimentos mais profundos das pessoas, o que possibilita um melhor engajamento aos propósitos e causas sociais. A música é inspiração e transcende qualquer cultura. É capaz de dar relevância às causas e às comunidades envolvidas com elas e a proteção da Amazônia é uma causa que deve ser associada à música e a arte. A música é o condutor mais rápido e eficiente para projetar uma ideia, com muito poder nos sentimentos e emoções humanas”, diz Sergio Lopes, sócio fundador da LCTM. Foi ele quem, com essa ideia em mente, apresentou a proposta do prêmio à United Earth, sabendo que Claes e Marcus queriam amadurecer um projeto semelhante. E assim nasceu o Prêmio United Earth Amazônia.
O prêmio contempla duas categorias- arte e música e histórias e projetos ESG. No primeiro caso, a seleção é discricionária e feita pela United Earth e pela LCIM Brandbuilders. Os
primeiros premiados na categoria arte e música são os compositores das músicas citadas no começo deste texto –a primeira é “Amazônia”, que Roberto Carlos gravou em 1989; a segunda, “Panorama Ecológico”, de Erasmo Carlos. A célebre dupla falava sobre o descaso ambiental já na década de 70, quando o tema não estava sob holofotes. Em “O Progresso”, falam sobre manchas de óleo no mar, no “verde da Terra morrendo” e que “esse tal de ouro negro não passa de um negro veneno”. Em 1981, Roberto Carlos gravou “As Baleias” e ali já alertava para o risco de as gerações futuras conhecerem o maior mamífero do mundo só por imagens de livros ou filmes.
“O Brasil é um inteiro ecossistema musical. Quando Sergio [Lopes] me apresentou a música de Roberto e Erasmo, nossa… Roberto Carlos é realmente ‘King Carlos*”, diz Marcus Nobel. Os compositores foram convidados a receber o prêmio há oito meses, quando Erasmo ainda estava bem de saúde.
Ele faleceu em novembro e deve ser representado por familiares em Manaus. A presenca de Roberto Carlos foi confirmada.
No caso das categorias ESG, o United Earth Amazônia segue a metodologia do Prêmio Nobel da Paz, o mais famoso de todos. “O Nobel da Paz é uma premiação humanitária e eu diria também espiritual, porque reconhece que ciência e tecnologia, sozinhas, não irão resolver os problemas da humanidade. Por isso, tornou-se o modelo do que eu queria fazer no Brasil e na Amazônia”, diz Marcus Nobel.
As inscrições do prêmio lançado agora não são abertas ao público. Quem faz a indicação das candidaturas são representantes da sociedade e, a partir daí, começa o processo seletivo.
A escolha final é feita por consenso pelos membros do comitê. “Ao definirmos qual seria o legado do prêmio, pensamos que o maior valor que poderíamos agregar para a Amazônia seria trazer luz para os esforços anônimos, para propor os projetos que já vêm fazendo a transformação ambiental e social, as que não têm visibilidade”, diz Adriana Pacchiele, gerente -ambiental do projeto e líder do time ESG.
Entre as seis iniciativas vencedoras na categoria ESG está “Vaga Lume”, organização que procura triplicar o número de bibliotecas comunitárias na Amazônia e busca atender crianças de comunidades rurais, ribeirinhas, indigenas e quilombolas. Há dois que reconhecem o trabalho dos povos indígenas em restaurar a floresta – “Sataré Mawé”, no Amazonas e Pará, e o “Projeto Pamine – Renascer da Floresta”, do povo Paiter Suruí, em Rondônia.
“Sakaguchi Agroflorestal” premia uma iniciativa pouco conhecida na Amazônia, que é o modelo pioneiro de sistemas agroflorestais desenvolvido por imigrantes japoneses no Pará. “Braziliando” integra viajantes com comunidades tradicionais na Amazônia e busca transformar através do turismo sustentável.
“Mulheres do Maranhão” fortalece a inclusão social e econômica de mulheres a partir do cultivo do babaçu. “O prêmio é um reconhecimento desses heróis anônimos que provam que a floresta em pé tem muito impacto econômico e social, e economia verde é uma realidade evidente”, diz Alberto Traiger, sócio fundador da LCIM BrandBuilders.
Fonte: Valor Econômico – Daniela Chiaretti — De São Paulo